09/01/2015
O atestado de residência - Pedro Valls Feu Rosa
Dia desses fui convidado a provar que eu morava na minha casa. Lá estava eu, em uma repartição pública, olhar baixo e recatado, recebendo esta missão pela voz solene de um servidor.
A prova, segundo fui informado, seria uma conta de telefone. Felizmente tinha uma no bolso, e pude provar que eu morava lá em casa. Fiquei a pensar em minha pobre esposa, cujo telefone está em meu nome – percebo, agora, que ela não mora lá em casa. Aliás, talvez ela nem exista!
Na saída da repartição, já liberto da opressão da burocracia, fiquei a pensar no verdadeiro absurdo que é o “comprovante de residência”. Vamos lá: praticamente todo brasileiro tem CPF. E está ali, no Ministério da Fazenda, nosso endereço.
Fiquei a pensar nos demais cadastros: o da Polícia Civil, o do Ministério do Trabalho, o da Justiça Eleitoral etc. Em praticamente todos eles estão nossos dados – endereço incluído.
Cheguei à conclusão de que tudo isto é inútil na esmagadora maioria das repartições públicas – o que vale é o “atestado de residência” fornecido por uma empresa privada, materializado em uma conta de telefone!
Realmente é difícil de entender: a administração pública não acredita nas informações dela própria, mas confia cegamente em uma conta de telefone, emitida por uma empresa privada – qualquer uma delas!
Não importa se a conta já foi paga ou não, ou seja lá o que for – o que vale é ter uma delas no bolso. Percebi que uma conta de telefone passou a ser um salvo-conduto na selva da burocracia brasileira – uma questão de sobrevivência, pois.
O fato é que não importa o quão pobre ou rico seja um brasileiro – a hora de exibir, trêmulo e inseguro, o seu “atestado de residência” chegará. Isto é tão certo como a morte ou um recadastramento.
E lá vai o povo, pacífica e ordeiramente, para a fila de um recadastramento qualquer. Ora é o da identidade, ora o da Justiça Eleitoral ou o de algum outro órgão. Enquanto espera na fila aproveite para filosofar sobre os cadastros da administração pública. Quão bom seria se ele fosse único, contendo informações compartilhadas por todos os órgãos!
Já imaginou que maravilha? Um cadastro só, compartilhado por todos! Seria a libertação final de um povo obrigado a carregar no bolso a carteira de identidade e a conta de telefone!
Mas deixe de sonhar. Isto é impossível. Afinal, cada órgão quer ter o SEU banco de dados, as SUASinformações, o SEU cadastro, tudo dentro da SUA esfera de poder – da qual ninguém quer abrir mão. E é assim, dentro deste mundo da MINHA informação, do MEU poder, da MINHA prerrogativa, que você continuará ali, na fila do recadastramento, carregando no bolso a sua conta de telefone.
Periodicamente alguém anuncia uma nova tecnologia de identificação. Seria o caso de todos os órgãos se unirem e modernizarem o sistema em um processo único. Mas que nada! Cada órgão quer aparecer no noticiário como sendo o primeiro a utilizar o novo sistema. E como um não pode esperar o outro, cada qual gasta milhões em seu próprio cadastro – e promove seu igualmente próprio e exclusivo recadastramento particular, do qual você participará. Com a conta de telefone no bolso, lembre-se.
Esqueça também a possibilidade de estes recadastramentos serem feitos aos poucos, na hora da renovação de um documento qualquer. A ânsia pela notícia dificilmente permitirá esta bondade. Assim, prepare-se para largar seus afazeres e ir encarar a fila do próximo recadastramento – com a conta de telefone no bolso, claro!
O autor é desembargador
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